Ara circense

Já há bastantes dezenas de anos que se encontra recolhida na capela de Nossa Senhora do Rosário, em Outeiro Seco, uma importante ara circense, dedicada por Gaio C. Fusco ao deus Hermes Eidevoro a qual tem dado muito que falar e muita haverá que investigar e esclarecer.

Chamei-lhe ara circense por entender que esta relacionada com os espectáculos romanos realizados no circo, mais especificamente com os combates de gladiadores.

Qual foi o seu lugar de origem e onde era verdadeiramente o circo? Concretamente, até agora, ainda não foi possível saber-se. Os restos da vetusta AQUAE FLAVIAE repousam escondidos sobre as construções e o subsolo de CHAVES, |possuindo-se apenas alguns achados dispersos, fora do seu conjunto.

A mais antiga referência desta ara é de Tomé de Távora (1), que diz;

“Em o lugar de Outeiro Seco fica p. a ap. (a parte) do Norte em distancia de hua legoa da mesma V.ª (vila) naponte de hu Ribeiro que passa plº meyo delle esta um Pedestal cahido q tem as letras seguintes:»

 

Corno se pode deduzir, o Pedestal referido é a próprio ara que estava tombada, ao abandono, na aludida ponte do ribeiro.

Contador de Argote (2) entre outras coisas diz-nos: “Cayo Cerecio Fufco dedicou efta memoria a Ermaeidevoro, por voto, que tinha feito, em razão de bom fucceffo, que teve quando fez a fefta do jogo dos Gladiadores.

         Eftes jogos dos Gladiadores eraõ humas feftas, e efpectaculos, que publicamente faziaõ  certos homens a que chamavaõ Gladiadores, porque combatiaõ entre fi com efpadas ferindo-fe, e matando-fe para divertimento dos affiftentes. O vencedor tinha feus prémios. Eftes jogos coftumavaõ fazellos para recreaçaö do Povo aquelles que ferviaö hum dos principaes Magiftrados da Cidade; e efta tal dignidade he certo, que a teve em tinha fervido todos os cargos honorificos da fua Republica.”

  O arqueólogo Hübnert (3) já inclui o estudo desta ara no CORPUS, II, 2473, que apenas se indica para consulta dos mais estudiosos.

Do estudo de Leite de Vasconcelos (4), do que mais interessa passo a transcrever:

“Na capella da Senhora da Azinheira, em Outeiro Sêcco, concelho de Chaves. ha uma ara de granito, de 1m,14 de altura, e de 0m,41 de largura na cornija, a qual ara contém uma inscripçãos que eu transcrevo aqui ao lado, e que eu copiei lá em 1902.”

Na sua nota n.º 3 tem uma curiosa informação, que não quero deixar de transcrever:

“A ara nessa ocasião formava pedestal a uma lamparina que a enchia de azeite e a danificava. Vendo eu tão pouco estimado um monumento de tal valor, obtive pelas vias competentes e a trôco de um serviço que o Governo Prestaria ao povo de Outeiro, que a ara fosse cedida ao museu etnológico. Os maus fados intervieram porem no caso, e a ara, em vez de vir a torna-se útil aos estudiosos num estabelecimento científico central e nacional por lá ficou a um canto da capella onde estava.”

Também Mário Cardoso (5) se debruçou no estudo e interpretação desta ara. Para evitar delongas, apenas citarei:

“Esta inscrição tem levado tratos de polé. Vê-se que já serviu para caixa de esmolas (peto; mealheiro), pois, numa das suas faces, gravaram-lhe o seguinte: PETO / FABRI / CA DE S / TA ER / MIDA.

É curiosíssima e de muito interesse esta inscrição, alheia a esta ara. O estilo de linguagem, escrita no «peto desta ermida», parece-me anterior à metade do século XVII, antecedendo assim a localização em que Tomé de Távora situa o «pedestal cahido» na ponte. Foi levada depois para a ponte do ribeiro, possivelmente contra a vontade da maioria do povo, e por isso, foi tombada, ficando na indiferença.

Mais tarde, voltou para a Capela da Senhora da Azinheira, onde Leite de Vasconcelos e Mário Cardoso a foram encontrar. Posteriormente, foi transferida para a capela da Senhora do Rosário, onde se encontra.

Por ser de muito interesse, do mesmo trabalho de Mário Cardoso transcreve-se:

 “Dizem que, com receio de que a levassem do local para qualquer museu, o falecido Padre Liberal Sampaio (6), notável estudioso e coleccionador que residia em Outeiro Seco, fizera espalhar entre o povo ignorante e rude a grosseira lenda de que aquela pedra tinha virtudes especiais contra o raio e tempestades, e que, no Dilúvio universal, flutuara sobre as aguas! Por isso os habitantes do lugar se opuseram, desde então, a que a tirassem donde está.”

O Padre Liberal Sampaio Estava muito ciente do valor histórico -arqueológico desta ara. Receoso de que fosse parar a um museu fora da região, ou, por grande infortúnio, em pedaços, fosse servir de entulho numa vala comum, forjou esse boato.

Isso deu origem a que, pelo que ainda se conta junta à Capela de Nossa Senhora do Rosário foi colocado um banco, faca e alguidar, como uma sentença dada a um grupo que, certo dia ali se deslocou para dar outro destino à cobiçada ara.

Na década de 1930, após a fundação do Museu Regional Flaviense, o entusiasmo da sua valorização cresceu em Chaves. Certo dia, um autarca desse tempo, com mais duas ou três pessoas, tentarem obter a ara, por intermédio da Junta de Freguesia, para dar entrada no Museu. O Presidente da Junta, firme e delicadamente, informou que o povo de Outeiro Seco não estava de acordo e que ele não podia ir contra isso…

 

- E se ele vir busca-la com uma força Militar? – Insistiu o autarca.

- Poderá faze-lo, só que não me responsabilizo pelas consequências?...

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

Foi quanto bastou para de uma vez por todas não se mexer mais no assunto. E muito curioso verificar-se que a generalidade do povo, mesmo sem saber o verdadeiro significado, tem grande respeito por esses achados. Algo de religiosa intuição, como um atavismo místico, leva a sacralizar os objectos rituais de outras crenças. Então, solicitamente, procura trazê-los para os lugares sagrados do seu único e verdadeiro Deus.

Esta ara também foi objecto da observação de Tranoy (7). Dele, apenas quero transcrever:

“HERMES DEVORIS. – Não obstante as variantes locais de seu nome, é necessário conhecer na ara de Outeiro Seco (Chaves) uma dedicatória a Hermes com o sobrenome indígena de origem céltica: HERMES DEVORIS. O dedicante é Gaio Cexaecius FUSCUS que fez este altar (ara) pelos sucessos obtidos por um “Munus” (oficio) de gladiadores… A identificação do dedicante Chaves com o “FLAMINE” (sacerdote) de Tarragona permite então datar esta inscrição na segunda metade do século II.”

Tal com Tranoy, A.R. Colmonero (8) atribui a feitura desta ara a uma data avançada da segunda centúria da nossa era.

Este, como grande epigrafista e historiador, incluiu o estudo desta ara no seu livro AQUAE  FLAVIAE – I Fontes Epigráficas, recentemente publicado e em venda na Biblioteca Municipal e nas livrarias de Chaves. Desse livro transcrevo o que mais interessa sobre o altar ou ara dedicado ao deus HERMES EIDEVORO:

 

“INTERPRETAÇÃO: ERMAE EIDE / VORI OB EV / ENTUM BO / NUM GLADI / ATORI MUN / ERIS (hedera) / G (aius) CEXAEC / US FUSCUS / S X (decem) EX / VOTO.

“Gaio Ceraécio Fusco dedica este altar a Hermes Eidevoro, por um voto que fez pela décima vez, por causa do êxito do espectáculo gladiatório por ele oferecido”.

ANOTAÇÕES: sentimo-nos obrigados a reconhecer que a sigla correspondente ao prenomen do dedicante não é L mas G. alem disso, coincidimos com Tranoy em que se trata de uma divindade clássica, o Hermes grego, com um epíteto indígena que não é Devorix, como afirma o autor francês seguindo Albertos, mas Eidevoro, em dativo Eidevori (Devorix daria Devorici), em cuja significação não queremos entrar.

Parece-nos acertada, além disso, a velha sugestão de Hübner, aceitada depois por Cardozo, Alfödy (Flâmines …, 67), Tranoy, etc.de que esta personagem podia identificar-se com o antigo flamen romano aquiflaviense do mesmo nome, cuja dedicatória se conserva em Tarraco (8CIL, II, 4204). Cexaecus de Outeiro Seco viria a ser a adulteração de Ceraecius, dada a possível semelhança do R com o X para um gravador pouco culto.

No que n inguem insistiu até à data, salvo nos propios, é no X que precede o EX da penúltima linha. Queremos ver nesse sinal uma evidente expressão numeral: decem. Seria pois, o decimo voto oferecido por tal motivo.

Em nosso entender, este feito é de grande transcendência, posto que denota sucessão, e por isso não podemos mostrar-nos de acordo com Tranoy na suposição de que se trata de um voto oferecido pelo flamen, provincial uma vez vindo para a sua terra, agradecendo feitos desportivos relacionados, de alguma maneira, enquanto exerceu o seu cargo em Tarraco. Quando realizou essa dedicatória, cremos, e muito bem, que sucedeu ao contrario, durante o exercício dos cargos municipais que deviam figurar no seu Cursus, prévio à sua ascensão ao flaminato provincial. Mas neste caso nasce necessariamente uma série de interrogações: existiu um anfiteatro em Aquae Flaviae? Tranoy (Galice…, 302) afirma que o único que se conhece no NW é o de Bracara; mas longa de constituir este facto uma prova negativa, significa para nós um argumento a favor da existência de outro em Aquae Flaviae, sugerido, alem disso, pela presente inscrição, ainda que somente fosse de madeira e provisório, como sabemos que existiu nas proximidades de Xantem (Alemanha).

Outro facto certo: G(aius) Ceraecius Fuscus não é gladiador a que supostamente se refere a inscrição, nem muito menos escravo(como admite Magnas, Esclavos …, 1124). É, pelo contrário, um «quatorvir» do Município de Aquae Flaviae.